Por que sempre "uma escrivaninha em uma sucessão de salas lotadas"?

April 2, 2025 

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Li The Body Multiple pela primeira vez em 2018, quando cursava o mestrado na Universidade Federal de Minas Gerais. Estava exercitando o inglês que aprendi em parte na escola, em parte em casa, e em parte absorvido da cultura pop americana.

De lá pra cá, reli o livro algumas vezes — talvez seja mais adequado dizer que revisitei capítulos soltos ou até trechos, em momentos distintos.

Mas hoje precisei relê-lo. Vou usá-lo como referencial teórico no meu projeto — e é de bom tom conhecer um pouco mais intimamente com quem você vai se amarrar por um bom tempo. Releio como minha avó lia: apenas fazendo as pausas necessárias, com o livro a 40 cm do rosto. Logo na primeira página do capítulo 1, encontrei o relato da antropóloga Annemarie Mol sobre seu trabalho etnográfico, duas vezes por semana, em um hospital na Holanda:

“I had an identity card that allowed me to leave my bicycle behind a fence and drink coffee from the omnipresent vending machines. I had a library card and the use of a desk in a succession of crowded rooms…”

[Eu tinha um crachá de identificação que me permitia deixar minha bicicleta atrás de uma cerca e tomar café das onipresentes máquinas de venda automática. Eu tinha um cartão da biblioteca e o uso de uma escrivaninha em uma sucessão de salas lotadas…]

Esse trecho me lembrou da primeira vez em que precisei caminhar bastante dentro de um hospital para chegar à minha estação de trabalho.

Fui imediatamente teletransportada para 2014, para o primeiro hospital onde realizei pesquisa na vida. Ficava numa cidade com menos de 100 mil habitantes, no interior de Minas Gerais. Ainda meio verde na pesquisa — e um tantinho verde na vida também — cheguei pontualmente à porta do hospital que, diferentemente do hospital Z onde pesquisava a autora neerlandesa, não me ofereceu um cartão de acesso. Muito provavelmente porque eu ficaria apenas uma semana por lá, ou talvez porque, sendo um hospital público, não havia recursos para imprimir um crachá provisório — um luxo totalmente dispensável naquele contexto.

Na portaria, o Sr. Agenor me disse para segui-lo até “a sala dos papéis antigos”. Fiquei até aliviada por não ter crachá — isso implicaria me locomover com autonomia, algo que eu não teria a menor condição de fazer naquele lugar. Lembro-me de passar por uma catraca, subir uma rampa, virar à esquerda, um corredor com portas de consultórios enfileiradas, e o Sr. Agenor andando depressa, narrando os detalhes da agenda do dia: “Agora você vai pegar os livros de despesas…” Nesse momento, ele já havia virado outra esquerda, que dessa vez dava numa maternidade (seria?). Ouvi um gemido de dor — seria a ala obstétrica? Vi uma mulher nos últimos instantes da gravidez, andando encurvada, com uma das mãos nas costas. Evitei que nossos olhares se encontrassem — seria falta de respeito — e segui andando (sem parecer que corria) atrás do Sr. Agenor, que já dobrava à direita. Aquele prédio claramente era uma extensão mais nova: pé-direito mais baixo, janelas mais modernas e um cheiro de feijão cozinhando que invadia o ar. Devia ser a cozinha — o corredor tinha janelões cobertos apenas com uma tela de arame, e por ela eu via uma moça mexendo vigorosamente uma panela enorme de algo, talvez arroz? Dizem que comida de hospital não tem gosto — não senti cheiro de alho no ar.

Abobalhada com o tamanho da panela, perdi o rastro do Sr. Agenor, que andava rápido, preocupado com seus muitos afazeres do dia. Ele era do tipo de pessoa que, se tivesse um crachá funcional, estaria escrito “espinha dorsal da instituição”. Um dia com esse homem de cama seria um dia em que o hospital não funcionaria.

Voltando ao meu desespero: já começava a desacreditar do santo graal da pesquisa, pois perdi de vista o Sr. Agenor. Seguindo em frente, vi-me numa interseção de corredores e notei, à direita, uma porta grande e fechada. Só me restava seguir para a esquerda, e dessa vez fui parar num cômodo escuro e amplo. Não acreditei: era uma igreja católica. Lá dentro, o impaciente Sr. Agenor me esperava com um molho de chaves na mão. Não tive tempo de olhar para o teto, mas tive a impressão de algo neoclássico. Do lado esquerdo, com certeza, A Mesa do Senhor, com os santos e os pilares; do direito, os bancos da congregação. Nem deu tempo de pedir uma pausa para ver o altar-mor, pois outra porta já se abria. Essa eu sabia: era a sacristia! Reconheci logo pelos gavetões onde se guardam os paramentos. E finalmente, uma mesa! Seria essa minha estação de trabalho pelos próximos dias?

Acho que sim, pois foi ali que o Sr. Agenor abriu as janelas e deixou a luz do sol entrar. Eu só rezava para que o cheiro de umidade também se dissipasse. Olhei para fora: dava vista para o cemitério da congregação. Com poucas palavras ditas rapidamente, o Sr. Agenor colocou sobre a mesa uma pilha de maços de documentos separados por pastas e disse: “Fique aí. Até umas 12h eu te tiro daqui”. E saiu. Ouvi o barulho da chave girando na fechadura — com certeza do século XIX.

Foi a primeira vez em que precisei cruzar mil corredores e salas para alcançar uma mesa de pesquisa dentro de um hospital — mas não a última, depois conto das outras. E devo dizer: foi a única vez em que fui trancada dentro de uma sacristia para evitar que fugisse com documentos ~ indevidamente apropriados ~. Fiquei pensando quem teria passado por ali antes de mim e causado tamanha medida de segurança (?).

No dia seguinte, corri atrás do Sr. Agenor devidamente munida de água e lanchinhos, pois já sabia que, naquela semana inteira, eu deveria me portar com disciplina militar — sendo liberada somente na hora do almoço.

eu, na flor da idade presa na sacristia

eu, na flor da idade presa na sacristia